28.1.06

Conheci uma menina (XV)

Comecei por não entender o que se passava. Como se um não-entendimento pudesse ser começo de alguma coisa..
A multidão juntava-se em volta da montra e estacava. Ficavam calados, e voltavam pálidos, cavernosos, a pele como se tivesse sido encerada.. No meio da estrada os carros começaram também a parar, em tentativas fracas de perceber o que estava a acontecer. Até que alguém sussurrou perto de mim que já estava a ligar para o 112. "Atropelamento na rua 23..depressa, é uma criança!" e a multidão continuava a engrossar.
Nestas alturas aparece sempre um bombeiro ou alguém grita que é médico. Não podia ser uma criança. "Não pode ser." Não podia ser a minha criança. "Não pode ser." Não podia ser a Vera. "Não pode ser." Mas de repente estava frio e foi como se me afogasse num buraco de pesca dos esquimós. Cortados no gelo. De repente não estava ali e ninguém tinha sido atropelado, muito menos uma criança. Muito menos a minha criança..
Mas como se fazia para andar? Um pé à frente do outro e uma noção de equilíbrio..-não soube.

E começaram as gargalhadas que me eram tão docemente familiares e ao fundo da rua, de gelado na mão, a criança do vestido branco. Soube de novo correr, respirar e, mais que nunca, soube a tanto a vontade de não a perder. A Vera.
Chegou o 112 e soube-se depois que a criança atropelada morrera.
Mas, e então?..

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